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Julio Pompeu: ‘Culpados’

Julio Pompeu (*) –

Leôncio é piadista. Do tipo inconveniente. Se fosse mais velho, seria o “tio do pavê”, mas ainda é bonitão demais para ser tio. E, às vezes, tem menos graça que um típico tiozão.

Faz sucesso em palcos e telas fazendo alguns rirem ao ofender outros. A surpresa de suas piadas está na coragem de chocar e ofender. Sem a dor e ofensa de uns, outros não achariam graça alguma no que diz. O preço da graça de Leôncio é pago pela tristeza dos outros.

Julgado, foi condenado pelo que disse nos palcos para gente que pagou para ouvi-lo. Deveria ter sido algo da intimidade entre artista e público fechado em um teatro, mas como não existe mais intimidade, o show foi parar na internet, ofendeu a quem não pagou nem queria ouvi-lo. Muita gente o defende. Acharam a punição injusta.

Doutor Carlinhos é figura conhecida no meio jurídico. Exibe com frequência seu sorriso largo em restaurantes chiques e eventos engravatados de sua cidade. Conhece muita gente e faz questão de dizer o quanto conhece de gente. Todo mundo é seu grande amigo, um querido.

Descobriu ainda estudante que só há dois caminhos para o sucesso no Direito. Conhecer muito o Direito ou conhecer muita gente. Escolheu o segundo. Não porque não gostasse ou não tivesse capacidade de estudar, mas porque conhecer muita gente é bem mais eficiente do que conhecer os salamaleques jurídicos mais sofisticados. Processo se ganha na conversa ao pé de ouvido e não na redação da petição.

Enriqueceu negociando sentenças com seus amigos íntimos. Descoberto, tratou de sair dizendo que não era bem isso. Tudo perseguição injusta. Autoridades disseram, em público, que não deixariam barato e o investigariam. Privadamente, nas alcovas dos gabinetes ou nas festas íntimas, lhe dizem, tristes, que sua situação não é fácil, mas “vamos ver”. Já quanto às outras autoridades, as que sentenciam sentenças compradas por ele, há dúvidas, faltam provas. Doutor Carlinhos descobriu que no mundo de gente poderosa do qual ele faz parte, há gente bem mais poderosa que ele. Tão poderosa que está acima de qualquer suspeita.

Sebastião nunca aceitou ser chamado de Tião, mas quanto mais reclama disso, mais lhe aporrinham gritando “ô Tião!”. Na delegacia, foi um mísero alento ser chamado de senhor Sebastião. Preso em flagrante por furto de carne num supermercado. Apanhou do segurança antes da polícia chegar. E apanhou da polícia depois que ela chegou. Na delegacia, não disse que apanhou por medo de apanhar mais.

Explicou para o delegado a sua situação. Tinha uma terrinha, mas que lhe foi tirada na justiça. Um trambique, segundo ele, feito por um tal Doutor Carlinhos. Uma decisão injusta que o tirou a terra de onde tirava o sustento. Na fome e no desespero, tentou levar a picanha.

O delegado foi gentil. No fundo, tinha pena do senhor Sebastião. Mas também tinha um dever a cumprir e sabia como os promotores pensavam. Explicou, triste, que a situação de Sebastião era difícil porque ele pegou uma picanha, que era carne cara.

Sebastião entendeu que o pessoal da promotoria e os juízes não aliviavam quando preto pobre pegava carne cara. Carne cara não podia. Se pegasse do lixo, tudo bem, no máximo só apanhava dos seguranças do mercado. Carne baratinha, cheia de pelanca e nervos, ia preso, mas talvez aliviassem a sua, mas picanha…

Enquanto esperava o carro que lhe levaria algemado para uma cadeia, viu na televisão uma moça branca e bem vestida falando da condenação de Leôncio, que mesmo condenado estava solto porque tem recurso e o recurso do recurso do recurso. “Ele é culpado de racismo e aquela condenação era exemplar”, dizia a moça.

Sebastião riu. Meio pela raiva, meio pelo ridículo da situação, vendo o jeito exemplar com que a sociedade protege gente de pele preta e surrada que nem a sua.

(*) Escritor e palestrante, professor de Ética do Departamento de Direito da UFES, ex-secretário de Direitos Humanos no ES.

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